Lanchas de reboque
Texto escrito por Almir Diniz
“Café-com-pão, bolacha não”, “café-com-pão, bolacha não”, era a voz roufenha e monótona da Xiborena em demanda da ilha do Careiro.
Quando ia, levava pessoas, notícias, cartas, jornais, encomendas, lembranças.
No retorno trazias leite e derivados, frutas, verduras, legumes, flores, gente, saudades.
Vagarosa, singrando as águas do rio Negro, a favor da corrente, enfeitava a paisagem de cores e espumas. Cores, das vestes alegres de jovens passageiras que voltavam ao campo ou que iam visitá-lo. Espumas, elaboradas pelo banzeiro oriundo do deslocamento da lancha em contato com a vegetação aquática protetora das beiradas dos igapós que margeiam a ilha de Marapatá e do varzeano Caldeirão, mescla de paraná, lago e igapó, de cujo intrincado de belezas naturais surgia, como que por artes de encanto aquele valente caboclo a vender broas e gengibirra. Depois o encontro das águas com sua eterna magia de beijos molhados e abraços liquefeitos que teriam incentivado arianos portugueses ao deleite de misturas com negras africanas. E em seguida a travessia do Solimões com as lanchas de reboque arrastando filas enormes de canoas, unidas uma a outra, por cordas de juta ou agave, parecendo trens nativos, composições singulares deslizando sobre imenso trilho líquido.
E lá se ia a Xiborena contornando a praia da boca do Careiro (da ilha do Careiro), passando pelo Imanium, Miracauera, depois, lá em baixo, pela Camboa, Ilha das Onças, Murumurutuba, Parauá, chegando às proximidades do furo da Correnteza, de onde retornava, entrando pelo Cambixe, de subida e de retorno.
De quando em quando um apito, longo melancólico, de ordinário avisando que havia passageiro a bordo.
O ribeirinho se apressava, pulava na canoa abancando-se, soltava a amarra e apanhando o remo preparava a abordagem. A lancha diminuía a marcha para facilitar a operação. A canoa atracava a bombordo ou a estibordo e o passageiro, normalmente desajeitado, se não era da roça, punha os pés num banco e depois no estrado, abaixava-se pousava as mão nas falcas, demonstrando receio, às vezes medo, não raro pavor. A canoa se afastava; o comandante acionava a campa uma vez – delém – e a máquina era ligada; duas – delém, delém – e lá ia ela à meia marcha; depois, três – delém, delém, delém – e a marcha era total. As cordas que atavam as canoas uma a uma e cada uma a outra, arqueadas pela diminuição da marcha voltavam a esticar-se, e as igaratés e os pequenos batelões rebocados, enfileiravam-se novamente, e o trem flutuante retomava a romântica caminhada sobre a imensa pista líquida, enfeitada de meninos nus, aguardavam a passagem da composição para alegrar sua espera no breve balanceio das ondas de todos os dias: “café-com-pão, bolacha não”.
Fonte: Biblioteca do Amazonas