Amazônia e Mata Atlântica já estiveram ligadas duas vezes nos últimos 23 milhões de anos, revela estudo brasileiro
As florestas já foram ligadas por corredores úmidos que cruzavam o cerrado e a caatinga.
Segundo diferentes estudos, há milhares de anos, a Amazônia e a mata atlântica, hoje separadas por 1,5 mil quilômetros, estavam conectadas por corredores úmidos e verdes que cortavam o cerrado e a caatinga. Agora, a partir de uma análise aprofundada de pássaros, um especialista da Universidade de São Paulo (USP) conseguiu identificar quando e em que áreas do país as duas florestas se encontraram.
A análise do parentesco entre dezenas de espécies de aves da mata atlântica e da floresta amazônica levou o biólogo Henrique Batalha-Filho a identificar dois períodos do passado distante em que esses dois ecossistemas, hoje separados por distâncias de até 1.500 quilômetros, estiveram conectados. As duas florestas brasileiras abrigam pequenas aves – pretas com cabeça escarlate, castanhas pintalgadas de branco e cinzentas, entre outras – com graus de parentesco variados, indicando que houve algum tipo de ligação física entre esses dois ambientes em períodos distintos. O encontro remoto já tinha sido revelado por estudos anteriores com plantas e com mamíferos. Mas, até agora, não se sabia quando nem em quais trechos as florestas estiveram em contato.
Essas informações começaram a se tornar mais claras a partir de estudos que o biólogo desenvolveu com pássaros do grupo dos suboscíneos do Novo Mundo, cujos representantes mais ilustres nas cidades brasileiras são o bem-te-vi e o joão-de-barro. Batalha não trabalhou com essas duas espécies, mas com aves do mesmo grupo especialistas em florestas, como o tapaculo-pintado (Psilorhamphus guttatus), que vive na mata atlântica, o corneteiro-da-mata (Liosceles thoracicus), da floresta amazônica, e o cricrió (Lipaugus vociferans), encontrado nas duas. De acordo com os resultados de Batalha, publicados em janeiro deste ano na edição impressa do Journal of Ornithology, os tataravós dos tataravós dos tataravós dos pássaros que hoje assobiam lá e cá se conheceram e deixaram descendentes graças a acontecimentos geológicos e ecológicos em dois momentos muito distintos.
Rota sul
O mais antigo desses momentos, o pesquisador estima, aconteceu no Mioceno, entre 23 milhões e 5 milhões de anos atrás, quando a placa tectônica do Pacífico chocou-se com a Sul-americana e fez surgir a cordilheira dos Andes, a cadeia de montanhas com mais de 7 mil quilômetros de extensão e altitude média de 3.500 metros que corta sete países (Chile, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Argentina e Venezuela). As montanhas que se ergueram e formaram um paredão isolando a Amazônia do oceano Pacífico também originaram canais elevados onde cresciam savanas inundadas, que podem ter atuado como pontes entre a porção sudoeste da Amazônia, onde agora é o estado de Rondônia, e a mata atlântica no que hoje são as regiões Sul e Sudeste do país. Essa ponte temporária, que deve ter sido semelhante ao chaco típico do Paraguai e da Bolívia, permitiu a circulação das aves a despeito do ambiente mais árido que hoje isola as duas florestas.
As testemunhas dessa conexão mais antiga são o tapaculo-pintado, comum nos bambuzais da mata atlântica, com 13 centímetros de comprimento e pintas espalhadas pelo corpo, e o corneteiro-da-mata, conhecido pelos sons estridentes que emite e encontrado nas matas de várzea da Amazônia. Batalha explica que a existência de espécies muito aparentadas – espécies irmãs, no jargão dos biólogos – exclusivas de cada um dos biomas é evidência de uma conexão mais antiga, depois da qual houve tempo suficiente para que as aves se diferenciassem. Um exemplo ainda mais eloquente dessa divergência, ressalta o pesquisador, são os gêneros irmãos Mackenziaena e Frederickena. O gênero Mackenziaena é representado pelas borralharas e as borralharas-assobiadoras, pássaros de 22 centímetros de comprimento e íris vermelhas. A borralhara-do-norte e a borralhara-ondulada, do gênero Frederickena, por sua vez, são típicas da Amazônia. A existência de gêneros exclusivos de cada uma das florestas supostamente indica que, quando a rota sul se desfez, aves com um ancestral em comum permaneceram isoladas a leste e oeste e ao longo do tempo seus descendentes acumularam diferenças o bastante para merecerem essa distinção taxonômica.
Rota norte
A segunda ligação deu-se mais recentemente, no Plioceno e no Pleistoceno, entre 5,5 milhões e 11.500 anos atrás, unindo a mata atlântica do litoral do Nordeste com a vegetação amazônica das Guianas e do estado do Pará, perto da ilha de Marajó, além das regiões dos rios Xingu e Tocantins-Araguaia. De acordo com Batalha, nessa região o principal fator que influenciou a diferenciação das espécies foram as glaciações. Para justificar a análise, ele recorre à Teoria dos Refúgios, formulada nos anos 1960 pelo biogeógrafo alemão Jurgen Haffer e aplicada à evolução da Amazônia no início dos anos 1970 pelo zoólogo brasileiro Paulo Vanzolini.
De acordo com esse modelo, nos períodos de clima mais frio e seco em boa parte do continente americano, sobreviveram fragmentos de florestas, onde aves buscaram abrigo e se encontraram. “Nas glaciações, as regiões áridas tendem a se expandir e as matas encolhem”, explica Batalha. “Mas a precipitação aumentou durante o Pleistoceno em alguns trechos da caatinga, segundo indica a maior deposição de cálcio em estalactites e estalagmites de cavernas.” O resultado desse aumento nas chuvas foi o surgimento de uma área onde as aves conseguiam sobreviver – uma floresta intermediária entre as matas úmidas e a caatinga que hoje ocupa o sertão nordestino.
Um indício forte dessa ligação mais recente é a existência de espécies que vivem tanto na Amazônia como na mata atlântica, mas não na faixa árida que separa as duas florestas. É o caso do pardo ou cizento cricrió, que tem 25 centímetros e funciona como um sentinela da mata, e do cabeça-encarnada (Pipra rubrocapilla), cujos machos se exibem em danças coordenadas para atrair as fêmeas no período de acasalamento.
“Tanto no Mioceno quanto no Pleistoceno sabemos que esses contatos aconteceram mais de uma vez, embora não seja possível estimar por quanto tempo as aves estiveram próximas”, reconhece Batalha. Ele agora se dedica a entender o sentido em que ocorreram essas migrações. Os dados, ainda preliminares, apontam que, na rota sul, o movimento parece ter sido bidirecional, pois são encontradas espécies mais antigas tanto na Amazônia quanto na mata atlântica. Na trajetória norte, as aves provavelmente voaram mais intensamente do oeste para o leste, já que as populações mais antigas estão majoritariamente na Amazônia. “O importante é que conseguimos elaborar um primeiro modelo que considera tempo e espaço para mostrar, a partir das espécies avaliadas, que os dois biomas estiveram conectados no passado, sugerindo ainda os impulsos que receberam para se separar.”
Batalha explica que os suboscíneos do Novo Mundo são preciosos para esse tipo de estudo porque acompanharam toda a história geológica da América do Sul. Antepassados desse grupo já existiam quando o continente se separou da África, há cerca de 100 milhões de anos, e aqui eles se diversificaram e se diferenciaram dos parentes do Velho Mundo. “Além de representativo dos dois biomas, esse grupo de aves é também bastante estudado, facilitando o aprofundamento das análises”, completa o pesquisador, que recorreu a informações genéticas armazenadas num banco de dados público, o GenBank.
Para desenvolver o estudo do Journal of Ornithology, parte de seu doutorado, ele passou três meses no Museu de História Natural da Dinamarca, em Copenhague. Lá trabalhou com Jon Fjeldså, curador da coleção de aves e especialista em espécies dos Andes. “Foi ele quem concebeu a ideia de relacionar dados filogenéticos com geográficos, o que foi determinante para que pudéssemos observar as rotas de conexão entre a mata atlântica e a floresta amazônica”, reconhece o brasileiro.
Ao comparar determinados trechos do DNA das espécies estudadas, ele avaliou a semelhança genética entre elas e as relações de hierarquia (quais eram mais antigas e quais eram mais recentes). “Partindo das semelhanças atuais e conhecendo o percentual de mutações que acontecem a cada período determinado de tempo para cada família, conseguimos, retrospectivamente, alcançar o ancestral comum”, explica. “Foi assim que confirmamos que esses pássaros estiveram juntos no passado”, completa.
Evidenciadas as conexões, era preciso compreender ainda quando essas aves se encontraram – e por que acabaram se separando. As respostas vieram da literatura disponível sobre outras transformações vividas pelo continente. “São bem conhecidos, por exemplo, artigos que resgatam as relações geológicas entre a mata atlântica e a Amazônia a partir da análise do pólen antigo e de estalactites de cavernas”, lembra Cristina Miyaki, orientadora do estudo. “O principal avanço oferecido pelo trabalho foi desenvolver uma meta-análise em ampla escala em que olhamos vários fatores. Conseguimos associar dados filogenéticos, geológicos, climáticos e de distribuição geográfica, permitindo narrar com mais detalhes o que aconteceu ao longo do tempo”, completa Cristina.
Essas contribuições se somam ao cenário traçado por estudos anteriores. Batalha se inspirou em parte no trabalho da bióloga Leonora Costa, da Universidade Federal do Espírito Santo, publicado em 2003 no Journal of Biogeography. Durante o doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley, ela traçou ambiciosos transectos que atravessavam o Brasil da mata atlântica à Amazônia. Ao longo de centenas de quilômetros ela capturou pequenos mamíferos, principalmente roedores e marsupiais, e analisou o DNA deles para investigar as relações evolutivas entre as espécies. Surpresa por encontrar muitos casos em que espécies da mata atlântica tinham parentes mais próximos na Amazônia do que na própria mata atlântica, ela imaginou ligações entre as duas florestas, hoje representadas por matas de galeria ao longo dos rios no cerrado e enclaves úmidos, os chamados “brejos”, na caatinga. “Interpretei os bichos que ‘sobraram’ nesses locais como pistas de ligações passadas que hoje não existem mais”, explica Leonora.
O quadro mais elaborado esboçado por Batalha pode ajudar a impulsionar novos estudos que desvendem cada vez mais a dinâmica da formação da fauna e da flora das florestas brasileiras ao longo dos tempos.
Fontes:
https://www.correiobraziliense.com.br
https://revistapesquisa.fapesp.br/